quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Razão de ser desta página

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A Santa Cruz de Balasar é um fenómeno invulgar.
À partida, é-se levado a pensar em mais uma aparição fantasiada pela mente popular, mas depois vê-se que não: os documentos provam o contrário, e são fiáveis.

Verificada a autenticidade da aparição, surpreende a data em que ocorreu: 15 dias antes do desembarque do Mindelo, que definitivamente ia trazer a Liberalismo ao país, com todo o seu cortejo de violências, de desorientação, de reformas, de afrontamentos à Igreja e finalmente com a instalação em Portugal do primeiro regime democrático em sentido moderno.
A seguir, ao conhecer a história da devoção que a aparição gerou, verifica-se que ela foi explosiva, com um ou outro acontecimento lamentável de permeio, como o de 1903, em que foi morto um ex-regedor e que levou ao fim dos arraiais. Pelos anos 20 do mesmo século, tentou-se retomar a dimensão festiva antiga, mas sem sucesso. Nos anos 30 foi publicado o primeiro estudo rigoroso do fenómeno.
Adiante, acontece algo de espantoso, quando Jesus anuncia que a aparição fora como uma antecipação da Alexandrina e do seu sofrimento.
Dar a conhecer um pouco de tudo isto foram boas razões para criarmos esta página.

Página relacionada
Pode encontrar aqui um trabalho desenvolvido e actualizado sobre o tema da Santa Cruz.

Balasar foi meta de peregrinação

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Desde 1832, por vários anos, Balasar foi meta de peregrinações em honra da Cruz aparecida misteriosamente na terra. Para protecção desta Cruz foi construída uma Capela, que tem na frente a data desse mesmo ano de 1832, esculpida em pedra.

A fachada da capela está voltada para o antigo caminho que vinha da ponte para a Igreja do Matinho, Escariz, Vila Pouca e Gresufes. O lugar da aparição era certamente inculto e em declive.
Posteriormente, construiu-se uma segunda capela, de maiores dimensões, demolida em 1907 para deixar espaço para a edificação da nova igreja paroquial.

A aparição da Santa Cruz

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O Relatório que o Pároco de Balasar enviou para Braga sobre a aparição da Santa Cruz data de cerca de mês e meio após o facto: 6 de Agosto de 1832. Veja-se o seu começo dele:
Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor
Dou parte a Vossa Excelência de um caso raro acontecido nesta freguesia de Santa Eulália de Balasar. No dia de Corpo de Deus próximo pretérito, indo o povo da missa de manhã em um caminho que passa no monte Calvário, divisaram uma cruz descrita na terra: a terra que demonstrava esta cruz era de cor mais branca que a outra: e parecia que, tendo caído orvalho em toda a mais terra, naquele sítio que demonstrava a forma da cruz não tinha caído orvalho algum.

Continuação do Relatório

O Pároco actuou com circunspecção, com um notável sentido de bom senso:

Mandei eu varrer todo o pó e terra solta que estava naquele sítio; e continuou a aparecer como antes no mesmo sítio a forma da cruz. Mandei depois lançar água com abundância tanto na cruz como na mais terra em volta; e então a terra que demonstrava a forma da cruz apareceu de uma cor preta, que até ao presente tem conservado. A haste desta cruz tem quinze palmos de comprido e a travessa oito; nos dias turvos divisa-se com clareza a forma da cruz em qualquer hora do dia e nos dias de sol claro vê-se muito bem a forma da cruz de manhã até as nove horas e de tarde quando o Sol declina mais para o ocidente, e no mais espaço do dia não é bem visível.

O monte Calvário

A expressão monte Calvário, do relatório, indica sem dúvida o morro que vai de sul e que desce ali para o rio Este. Devia ser bastante ermo; a terra é cascalhenta e o rio não era ali vadeável. Mas havia a ponte de madeira dita de D. Benta.

Algures, talvez sobre o cimo morro, erguer-se-iam as três cruzes do Calvário.
As pessoas de que fala o documento viriam porventura do norte do rio, do Telo e de Gestrins, e dirigiam-se para a antiga igreja do Matinho.

O desembarque do Mindelo


Em 1832, Portugal já vinha a viver um longo período conturbado e tinha iminente a guerra civil. O desembarque do Mindelo, que havia de conduzir D. Pedro à vitória sobre o irmão e ao triunfo do Liberalismo, ocorreu em 8 de Julho desse ano. Ele fora precedido por uma tentativa de aportar em Vila do Conde, que um padrão recorda junto à foz do Ave.

“Aquilo vem dar cabo disto”


Em 1832, conservava-se memória muito viva das violências contra a Igreja a que a Revolução Francesa dera azo. Por isso muito boa gente via com maus olhos os liberais. Ficou célebre a frase que a abadessa do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde pronunciou ao ver ao longe a esquadra liberal: “Aquilo vem dar cabo disto”. E assim foi.

O ex-voto da Bernardina Rosa


Este ex-voto com que Bernardina Rosa mostrou o seu reconhecimento à Santa Cruz de Balasar (ao Crucificado dela) lembra de modo directo a agitação que seguiu à vitória liberal, e que já vinha de antes. O abade de Touguinhó nele mencionado chamava-se Custódio José de Araújo Pereira (1777-1852?) e, ao que se sabe, era riquíssimo e irrepreensível: foi preso, mas "não foi à cadeia". Anos adiante, custeou uma nova igreja paroquial.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Igreja em cisma

Esta assinatura é do pároco de Balasar que enviou o relatório sobre a aparição da Santa Cruz de terra para Braga datado do mesmo mês de Agosto de 1832. No ano seguinte, não sabemos porquê, deixou de paroquiar a freguesia e sucedeu-lhe o P.e Manuel José Gonçalves da Silva. Como o pároco de Touguinhó, também este foi expulso de 1834 a 1841.
A desorientação que se viveu nas fileiras da Igreja foi ao ponto de esta viver em cisma durante um década, com bispos não reconhecidos pela Santa Sé.
Um importante documento da Santa Cruz tem a assinatura dum sacerdote que era irmão dum padre cismático.

Custódio José da Costa I

Custódio José da Costa, o balasarense de Lousadelo que pôs os seus haveres ao serviço da dignificação da Santa Cruz, fez-se representar neste quadro a óleo que se conserva na Capela.
Foi um homem providencial. Como leigo, a onda das expulsões dos párocos não o atingia e por isso pôde prosseguir a obra de dar dignidade à nova e surpreendente devoção.

Custódio José da Costa II

A legenda ao fundo do quadro contém estes dizeres:

Milagre que fez a Santa Cruz de Balasar, aparecida a 21 de Junho de 1832 a Custódio José da Costa, que, sendo o principal fundador desta capela, trabalhou cinco anos com o seu corpo e abonos de dinheiro, prometendo à mesma Santa Cruz que, se lhe permitisse estas obras sem perigos nem assaltos de ladrões, nela colocaria um painel com o retrato da sua efígie com a cruz na mão, e assim o concedeu a mesma Santa Cruz, e pede de mercê a todos que este lerem um Pai-nosso e uma Ave-Maria por minha intenção e por todos os benfeitores que ajudaram estas obras, aplicados pelas almas de seus pais e por todas as do Purgatório.

Custódio José da costa III

Na imagem, texto autógrafo de Custódio José da Costa.
O P.e Leopoldino Mateus escreveu sobre ele:

Este homem de bem e fervoroso católico nasceu em Balasar no ano de 1788. Filho de pais humildes, mas laboriosos, resolveu deixar o torrão natal e embarcar para o Brasil, como efectivamente fez, em 1803, para tentar fortuna. Ali, depois de uma luta de porfiados trabalhos, tendo adquirido uma fortuna razoável, resolveu regressar à sua terra, o que fez antes do aparecimento da Santa Cruz.
Custódio José da Costa, cuja efígie se conserva num quadro a óleo, na pequena capela, sendo testemunha da assombrosa aparição que emocionou não só o povo de Balasar mas também os crentes das vizinhas freguesias, que acorriam em grande número a visitar e rezar à Santa Cruz de Jesus Cristo, resolveu empreender a erecção de uma capela onde houvesse mais respeito e devoção pelo símbolo da Redenção.

Interior da Capela da Santa Cruz

O gradeamento em madeira delimita os contornos da cruz original. A terra, essa não é de origem, já que os devotos que visitam o lugar teimam em levar pequenas porções dela, obrigando os zeladores a trazer terra de outra procedência.

Nossa Senhora das Dores

A Cruz que se vê sobre o altar tem uma pintura muito apagada do Crucificado; ao fundo, ainda é bastante visível a representação de Nossa Senhora das Dores

O Registo

A esta estampa chamava-se Registo. Verosimilmente ainda virá do tempo de Custódio José da Costa. Veja-se a legenda:
“Nosso Senhor da Cruz aparecida no monte Calvário da freguesia de Balasar, a 22 de Junho de 1832.
O nosso Ex.mo Prelado concedeu 40 dias de indulgências a todas as pessoas que rezarem de joelhos um Pai-nosso e uma Ave-Maria diante desta estampa pela extirpação das heresias, concórdia entre os Príncipes Cristãos e exaltação da S.ta Madre Igreja Católica”.

Curiosidades

Desde 1830, vinha Balasar a renovar o tombo da sua Comenda. Isso obrigava à intervenção de muita gente que proporcionava uma animação menos comum à freguesia. Esse tombo, naturalmente, contém muitas informações. Por exemplo, a de que a freguesia, além do pároco, possuía um cura ou a de que à data da aparição da Santa Cruz já os futuros Viscondes de Azevedo possuíam a Quinta.Fragmento do Edital que anuncia o início das diligências para a feitura do novo Tombo
“O Doutor António de Paiva Ribeiro, Juiz de Fora dos Órfãos nesta vila de Barcelos e seu termo e Juiz do Tombo da Comenda de Santa Eulália de Balasar, da Ordem de nosso Senhor Jesus Cristo, por Sua Majestade Fidelíssima, que Deus guarde, etc., faço saber as todas as pessoas que o presente Edital virem e dele tiverem notícia que, por provisão de treze de Novembro de mil oitocentos e vinte e nove, expedida pela Mesa da Consciência e Ordens, foi Sua Majestade servido encarregar-me da factura do novo Tombo dos Bens, Propriedades e mais Direitos pertencentes à dita Comenda de Santa Eulália de Balasar […]
E assino trinta dias aos moradores existentes (sic) no termo desta vila, sessenta aos que dela viverem ausentes, quatro meses aos que habitam fora do Reino, contados do dia da afixação deste em diante, para satisfazerem a todo o referido, debaixo da dita pena e de proceder em tudo às suas revelias e de se haverem por citados para todo o relatado e mais termos necessários na forma do regimento”.

Esta circunstância, que trazia à freguesia gente dum saber acima do comum aldeão, como o Juiz e outros funcionários, há-de ter ajudado a divulgar a aparição de 21 de Junho de 1832

O ex-voto de 1838

Notável a concepção deste ex-voto de 1838 à Santa Cruz: a Cruz está estendida no chão, frente a uma mulher que reza. Além da Cruz, vê-se uma grande nuvem de tons brancos, que parece evocar a que guiava o povo hebreu na caminhada no deserto. Dela, um Olho de Deus, inscrito num triângulo isósceles, representando a Trindade Divina, como que reflecte para a mulher a força que nasce da Cruz.

"As Duas Fiandeiras" I

No romance As Duas Fiandeiras, publicado em 1891, Francisco Gomes de Amorim descreve a romaria da Santa Cruz do ano de 1845.
A igreja de que fala era com certeza a capela que então existia onde hoje está a Igreja Paroquial. Havia ainda um casinha das esmolas no lugar da actual a Residência.
De notar a grande concorrência de povo e o “vistosíssimo arraial”.

"As Duas Fiandeiras" II


















Capa de As Duas Fiandeiras e retrato de F. Gomes de Amorim

Cartaz I

Cartaz saído no jornal poveiro A Propaganda, em 5 de Novembro de 1936, quando se quis reactivar a tradição da festa do Senhor da Cruz e após a publicação dum longo estudo sobre a aparição de 1832.
Pouco depois vai Jesus convidar a Alexandrina para a crucifixão.

Cartaz II

Pormenor importante do cartaz anterior. Repare-se que onde aqui se fala do lugar do Calvário, originalmente, falava-se, e bem, do monte Calvário, espaço predominantemente ermo e silvestre.

Jesus fala da Santa Cruz I

No colóquio de 5 de Dezembro de 1947, Jesus falou assim à Beata Alexandrina:
"Quase um século era passado que eu mandei a esta privilegiada freguesia a cruz para sinal da tua crucifixão. Não a mandei de rosas, porque a não tinha, eram só espinhos; nem de oiro, porque esse com pedras preciosas serias tu com as tuas virtudes, com o teu heroísmo a adorná-la. A cruz foi de terra, porque a mesma terra a preparou.
Estava preparada a cruz; faltava a vítima, mas já nos planos divinos estava escolhida; foste tu.
O mal aumentou, a onda dos crimes atingiu o seu auge, tinha que ser a vítima imolada; vieste, foi o mundo a sacrificar-te".

Jesus fala da Santa Cruz II

Oito anos à frente, em 21 de Janeiro de 1955, insistiu:
Há mais de um século que mostrei a cruz a esta terra amada, cruz que veio esperar a vítima. Tudo são provas de amor!
Oh, Balasar, se me não correspondes!...
Cruz de terra para a vítima que do nada foi tirada, vítima escolhida por Deus e que sempre existiu nos olhares de Deus!
Vítima do mundo, mas tão enriquecida das riquezas celestes que ao Céu dá tudo e por amor às almas aceita tudo!
Confia, crê, minha filha! Eu estou aqui. Repete o teu «creio». Confia!”

A Santa Cruz de Barcelos


Até 1836, Balasar integrava-se no Concelho de Barcelos, em cuja sede se conta que no começo do séc. XVI também tinham aparecido umas cruzes.
Também lá a aparição deu grande brado e originou concorridíssimos arraiais.
Um livro de 1672 reuniu e explorou as memórias do acontecimento.

Conclusão

Em 1832, Balasar era muito diferente do que é hoje. No extremo do Concelho de Barcelos, distante de qualquer centro significativo, foi apesar disso a escolhida para a aparição da Santa Cruz.
Chegou-nos um conjunto de informações que nos permitem conhecer não só os factos com rigor, mas ainda circunstâncias variadas que os acompanharam. Colocam-nos no âmbito da história, do facto bem documentado e não da lenda.
Hoje sabemos que o dedo de Deus esteve ali, que tudo foi pensado em função da Beata Alexandrina, a “vítima do Calvário”.
Por isso, a importância da aparição de 1832 não pode deixar de ser enorme.

Em 2007 recordaram-se os 175 anos da aparição da Santa Cruz.
cb18